As Palavras E a Lei
José Reinaldo de Lima Lopes
As palavras e a lei
Direito, ordem e justiça na história do pensamento jurídico moderno
FUNDAÇÃO GETULio VARGAS
DIREITOGV
Editora 34
2.5. Tomás de Aquino (1225-1274): Ius e lex na Suma teológica
Tomás pretende dar conta das discussões em que se envolvem moralistas, canonistas e juristas. Quando escreve, o direito já se encontra desenvolvido como disciplina autônoma em relação à teologia e à filosofia. Existe, porém e por isso mesmo, um acúmulo de conceitos e palavras de origens diversas que precisam ser integrados em um todo coerente a distinguir os objetos das distintas disciplinas. Há o material romano acumulado ao longo da história com seus usos especiais de ius e lex. Há os usos das línguas vulgares que já introduziram directum. Há textos de canonistas e textos de juristas do itis commune. Há textos da patrística e da tradição bíblica, todos falando de justiça, lei e direito dentro de culturas e disciplinas distintas. O esforço de Tomás vai no sentido de determinar campos: o campo da lei e do preceito positivo humano, cujo estudo pertence aos juristas, o campo da lei divina, cujo estudo pertence aos canonistas, o campo da lei eterna, cujo estudo pertence ao teólogo, e o campo da lei natural, cujo estudo pertence ao filósofo moral. Para que todas essas leis sejam objeto de estudo, é preciso que sejam objetos racionalizáveis. O contingente e o aleatório não podem se converter em objeto de ciência: são objeto de sensação. Como transitar para o campo da ciência das leis e do direito? Esta é a questão fundamental. Tomas empenha-se em dizer que a lei é racional e objetiva (como medida), ainda que possa ser alterada pela vontade: em outras palavras, pelo fato de ser convencional não pode ser simplesmente arbitrária.
Os temas da lei e do direito aparecem na Secunda, isto é, na parte da Suma dedicada a compreender o homem (a Segunda Parte) e dentro da Secunda aparecem em dois pontos diferentes: na Primeira Parte da Segunda Parte (Ia IIae) encontra-se (a) o tema da lei como fator externo da ação. Na Segunda Parte da Segunda Parte (Ia IIae), na análise dos sentidos da ação (as virtudes são os móveis internos da açào), encontra-se o tema da justiça, dentro do qual se acha (b) ius (o justo, o devido, o direito). lus e lex não se confundem nessa ordem de explicação.
No âmbito da ação humana é que se estuda a lei: quais são os fatores externos ao homem que o impelem a agir? A resposta de Tomás é de que para o bem o homem é movido por Deus. E Deus o move de duas maneiras: ou ensinando ou ajudando. O movimento pelo ensino é fruto da lei. Ora, a lei, tendendo a ensinar, deverá ter algo a ver com a razão, pois para ensinar é preciso que o ensinamento — que também se chama preceito — seja compreensível, transmissível e objetivo. Assim como outros instrumentos de razão têm validade objetiva e podem ser ensinados e aprendidos, a lei tem validade objetiva porque é medida:
"A lei é uma regra ou medida dos atos, pela qual somos levados à ação ou dela impedidos." (Ia IIae, q. 90, a. l, c)
A medida é simultaneamente convencional e objetiva. O fato de ser convencional não a torna irracional. A medida é um artefato de comensurabilidade. Tanto na tradição aristotélica, conhecida por Tomás, quanto na filosofia contemporânea (a de Wittgenstein, por exemplo), aquilo que serve de medida é indispensável nas formas de pensamento, ação e comunicação entre os homens.
Falar em regra é falar de algo interpessoal, que pode ser ensinado e apreendido. Por isso, a medida não pode depender exclusivamente da vontade de um só sujeito. Para valer convencionalmente, é preciso que todos a compreendam e utilizem.11 A conclusão da primeira abordagem da lei (Questão 90, Ia IIae) toma por referência a lei humana, com a qual lidavam os juristas. A lei por excelência tem as características da lei humana:
"A lei não é mais do que uma ordenação da razão para o bem
comum, promulgada pelo chefe da comunidade." (Ia IIae, q. 90, a 4 c)
Aparecem aqui os elementos essenciais da lei, as suas quatro causas em termos aristotélicos: sua causa material ou racionalidade (ordenação da razào) controlada pela referência ao bem comum {para o bem comum}, isto é, sua causa final, e sua publicidade [promulgada), ou causa formal, procedente não de qualquer um, mas de quem tem autoridade (chefe da comunidade), causa eficiente. Toda lei se refere ao bem comum: a lei instaura a comensurabilidade e a igualdade entre seres capazes de ação Se uma lei rião instaura o bem comum (isto é, as condições de possibilidade de coexistência dos seres por ela regidos), é irracional e incompreensível: perde, pois, um elemento essencial de toda lei. A lei feita para aproveitar apenas a quem a faz é irracional (do ponto de vista comum, o ponto de vista da comunidade). Os tiranos, aliás, definem-se exatamente por legislarem no seu interesse, e não no da comunidade. Isso os desqualifica como senhores e príncipes e, por consequência, desqualifica sua legislação.